sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

PEDRINHAS E NOSSO SISTEMA CARCERÁRIO BRUTALIZANTE, VIL E IMPIEDOSO COM OS POBRES.


Arte: Rubens Jr.

“O presídio de pedrinhas é a consequência lógica do nosso Direito Penal segregador e higienizador”



J.U: Professor Rubens, o que houve em Pedrinhas é um caso isolado?

R.C.J: Não. É mais comum do que supomos. A decapitação é comum em alguns estabelecimentos e até mesmo o canibalismo já foi relatado. Infelizmente o que houve em Pedrinhas é apenas a consequência lógica do nosso Direito Penal segregador e higienizador. De políticas públicas de punição máxima direcionada a apenas uma parcela da sociedade, ao total descaso do poder público e principalmente a miopia da sociedade para o sistema carcerário.

J.U: Como assim miopia da sociedade?

R.C.J: Quando falamos em sistema carcerário e suas mazelas a sociedade tende a não se manifestar e não se indignar, pelo contrário apoia os movimentos de punibilização máxima e até incentiva as ações violentas e ilegais. Como quem está preso faz parte de um nicho social desimportante e incômodo, fingimos que o problema não existe. É uma miopia por que de longe não enxergamos o problema, somente olhamos para ele quando está próximo de nós, quando nos atinge. Como no caso de Pedrinhas.

J.U: Qual é a real situação do Sistema Carcerário Hoje?

R.C.J: Caótica, falida, em colapso. Qualquer adjetivo seria insuficiente para explicar aos leitores. Estamos hoje com mais de meio milhão de presos. Não temos lugar para eles. Temos 43% (dados otimistas) além de nossa capacidade. O número de presos cresce exponencialmente, 30% nos últimos anos. Para piorar quase metade de nossos presos ainda são provisórios, ou seja, não foram condenados em definitivo (na década de 1980 eram 15% do total). Uma pesquisa no Estado do Rio concluiu que apenas 37% destes presos serão condenados a uma pena efetiva de prisão. Ou seja, são prisões ilegais, geralmente de quem nem mesmo tem advogado. Dentro das prisões não se tem investimentos em trabalho, comida minimamente digna ou respeito à pessoa. Em alguns estabelecimentos as visitas íntimas são feitas no meio dos pavilhões, na frente de todos. De cada cinco presos um tem HIV. Sem contar a tuberculose. A situação é ruim para todos que fazem parte deste universo presos e os funcionários que lá trabalham sem treinamento, em situações insalubres e ganhando mal. O Brasil é um dos países onde mais se morre nas prisões. E quando mais aumentamos as prisões, mais a sociedade tem a sensação de insegurança. Portanto, essa banalização das prisões não vem trazendo soluções específicas.

J.U: Se temos tantas prisões, por que não se diminui a violência?

R.C.J: Por que a sociedade ainda não aprendeu uma verdade basilar: que a motivação ideológica da prisão não é prender aquele que transgride regras, mas sim afastar da sociedade uma selecionada e bem definida parcela da sociedade. Para confirmar isso, basta entrar em uma penitenciária e procurar por alguém, branco, de classe média, com ensino superior. Fatalmente não vai achar, embora todos cometam crimes. Por exemplo: hoje no Brasil apenas 1% dos presos tem ensino superior incompleto ou completo. Enquanto a média de pessoas com ensino superior completo no Brasil chega a 7,9%, se formos contar o ensino superior incompleto chegamos a 11%. (IBGE). Ou seja, determinada parcela da sociedade não vai ser presa, independente do que vier a cometer. Os presos são pessoas de baixa escolaridade, de nichos paupérrimos da sociedade, pardos e negros. E geralmente com crimes de pouco impacto. Crimes contra o patrimônio (furto simples, furto qualificado) ou tráfico de quantidades irrisórias (a maioria presa por tráfico transportava menos de 1 kg. Com mais de 100kg nem mesmo aparece nas estatísticas. Com 450kg menos ainda.).

J.U: Deve-se investir em mais prisões?

R.C.J: O foco não é investir mais em prisões. Afinal como tudo que expus aqui, o problema não é prender mais e mais. A solução está exatamente em rever o direito penal, rever quem está sendo preso, rever os efeitos que a prisão traz na vida do indivíduo e da sociedade. Mas a população vê com desconfiança o político que queira descontruir essa política de punição máxima. O que todos não conseguem entender, é que ao melhorar a situação dos presos e investir na desprisionização, a longo prazo, isso refletirá na sociedade e na violência. Do contrário, nunca conseguiremos reverter o quadro atual da sociedade.

J.U: Qual o efeito direto de uma prisão violenta na sociedade?

R.C.J: A população respalda as ações violentas contra presos, incentiva por vezes torturas e ações sem o devido processo legal. Depois quando essa situação se reverte em uma sociedade mais violenta, todos se perguntam por que. Não aprendemos em nada com os erros do passado. O sistema carcerário e sua condição foi responsável direto pela formação do Comando Vermelho no início da década de 80 e do PCC na década de 1990. A população talvez não saiba, mas a formação da mais famosa organização criminosa no Brasil se deu dentro dos presídios. Mais especificamente em um dos piores presídios do Brasil na época. Famoso presídio no Rio de Janeiro, conhecido pelas mortes, estupros e comércio de drogas. Foi lá que nasceu o comando vermelho, que tinha como objetivo inicial a proteção da massa carcerária contra abusos, a união contra as torturas e crueldades. Somente depois que essa razão inicial foi perdendo força e o movimento ganhou as ruas também. Já o PCC além de ter uma grande influência do próprio CV, foi catapultado pelo massacre do Carandiru, que deu subsídio ao fortalecimento da entidade. Sem me alongar no tema, que envolve erros do governo ditatorial, intelectuais presos nos anos de chumbo e pífias políticas de segurança pública, deve-se entender que, o que acontece em uma prisão reflete automaticamente nas ruas. Assim, uma prisão violenta gera mais violência.

J.U: Afinal de quem é a culpa?

R.C.J: Não podemos apontar um culpado somente, a culpa deve ser pulverizada,. Todos são culpados. A população que incentiva essas ações violentas; O judiciário que condena sem o contraditório e ampla defesa; Os governantes que se omitem, que não apresentam projetos, que não utilizam de maneira correta as verbas recebidas, que preferem não destinar toda a verba do fundo penitenciário almejando um superávit em sua balança, que em nome de votos acaba por preterir melhores políticas públicas penitenciárias; o MP que se omite; a OAB; Os advogados; O legislativo que infla a legislação penal, sem ouvir os especialistas, sem analisar as consequências e visando apenas o voto. Enfim, todos nós somos cumplices nas decapitações ocorridas em pedrinhas ou em qualquer prisão no Brasil.

arte: LATUFF

Entrevista exibida em fevereiro de 2014 em jornal impresso. Para ver a reportagem original clique AQUI