PEDRINHAS E NOSSO SISTEMA CARCERÁRIO BRUTALIZANTE, VIL E IMPIEDOSO COM OS POBRES.
Arte: Rubens Jr. |
“O presídio de pedrinhas
é a consequência lógica do nosso Direito Penal segregador e higienizador”
J.U: Professor Rubens, o
que houve em Pedrinhas é um caso isolado?
R.C.J:
Não. É mais comum do que supomos. A decapitação é comum em alguns
estabelecimentos e até mesmo o canibalismo já foi relatado. Infelizmente o que
houve em Pedrinhas é apenas a consequência lógica do nosso Direito Penal
segregador e higienizador. De políticas públicas de punição máxima direcionada
a apenas uma parcela da sociedade, ao total descaso do poder público e
principalmente a miopia da sociedade para o sistema carcerário.
J.U: Como assim miopia
da sociedade?
R.C.J:
Quando falamos em sistema carcerário e suas mazelas a sociedade tende a não se
manifestar e não se indignar, pelo contrário apoia os movimentos de
punibilização máxima e até incentiva as ações violentas e ilegais. Como quem
está preso faz parte de um nicho social desimportante e incômodo, fingimos que
o problema não existe. É uma miopia por que de longe não enxergamos o problema,
somente olhamos para ele quando está próximo de nós, quando nos atinge. Como no
caso de Pedrinhas.
J.U: Qual é a real
situação do Sistema Carcerário Hoje?
R.C.J:
Caótica, falida, em colapso. Qualquer adjetivo seria insuficiente para explicar
aos leitores. Estamos hoje com mais de meio milhão de presos. Não temos lugar
para eles. Temos 43% (dados otimistas) além de nossa capacidade. O número de
presos cresce exponencialmente, 30% nos últimos anos. Para piorar quase metade
de nossos presos ainda são provisórios, ou seja, não foram condenados em
definitivo (na década de 1980 eram 15% do total). Uma pesquisa no Estado do Rio
concluiu que apenas 37% destes presos serão condenados a uma pena efetiva de
prisão. Ou seja, são prisões ilegais, geralmente de quem nem mesmo tem advogado.
Dentro das prisões não se tem investimentos em trabalho, comida minimamente
digna ou respeito à pessoa. Em alguns estabelecimentos as visitas íntimas são
feitas no meio dos pavilhões, na frente de todos. De cada cinco presos um tem
HIV. Sem contar a tuberculose. A situação é ruim para todos que fazem parte
deste universo presos e os funcionários que lá trabalham sem treinamento, em
situações insalubres e ganhando mal. O Brasil é um dos países onde mais se
morre nas prisões. E quando mais aumentamos as prisões, mais a sociedade tem a
sensação de insegurança. Portanto, essa banalização das prisões não vem
trazendo soluções específicas.
J.U: Se temos tantas
prisões, por que não se diminui a violência?
R.C.J:
Por que a sociedade ainda não aprendeu uma verdade basilar: que a motivação
ideológica da prisão não é prender aquele que transgride regras, mas sim
afastar da sociedade uma selecionada e bem definida parcela da sociedade. Para
confirmar isso, basta entrar em uma penitenciária e procurar por alguém,
branco, de classe média, com ensino superior. Fatalmente não vai achar, embora
todos cometam crimes. Por exemplo: hoje no Brasil apenas 1% dos presos tem
ensino superior incompleto ou completo. Enquanto a média de pessoas com ensino
superior completo no Brasil chega a 7,9%, se formos contar o ensino superior
incompleto chegamos a 11%. (IBGE). Ou seja, determinada parcela da sociedade
não vai ser presa, independente do que vier a cometer. Os presos são pessoas de
baixa escolaridade, de nichos paupérrimos da sociedade, pardos e negros. E
geralmente com crimes de pouco impacto. Crimes contra o patrimônio (furto
simples, furto qualificado) ou tráfico de quantidades irrisórias (a maioria
presa por tráfico transportava menos de 1 kg. Com mais de 100kg nem mesmo
aparece nas estatísticas. Com 450kg menos ainda.).
J.U: Deve-se investir em
mais prisões?
R.C.J:
O foco não é investir mais em prisões. Afinal como tudo que expus aqui, o
problema não é prender mais e mais. A solução está exatamente em rever o
direito penal, rever quem está sendo preso, rever os efeitos que a prisão traz
na vida do indivíduo e da sociedade. Mas a população vê com desconfiança o
político que queira descontruir essa política de punição máxima. O que todos não
conseguem entender, é que ao melhorar a situação dos presos e investir na
desprisionização, a longo prazo, isso refletirá na sociedade e na violência. Do
contrário, nunca conseguiremos reverter o quadro atual da sociedade.
J.U: Qual
o efeito direto de uma prisão violenta na sociedade?
R.C.J: A população respalda as ações violentas contra presos,
incentiva por vezes torturas e ações sem o devido processo legal. Depois quando
essa situação se reverte em uma sociedade mais violenta, todos se perguntam por
que. Não aprendemos em nada com os erros do passado. O sistema carcerário e sua
condição foi responsável direto pela formação do Comando Vermelho no início da
década de 80 e do PCC na década de 1990. A população talvez não saiba, mas a
formação da mais famosa organização criminosa no Brasil se deu dentro dos
presídios. Mais especificamente em um dos piores presídios do Brasil na época.
Famoso presídio no Rio de Janeiro, conhecido pelas mortes, estupros e comércio
de drogas. Foi lá que nasceu o comando vermelho, que tinha como objetivo
inicial a proteção da massa carcerária contra abusos, a união contra as
torturas e crueldades. Somente depois que essa razão inicial foi perdendo força
e o movimento ganhou as ruas também. Já o PCC além de ter uma grande influência
do próprio CV, foi catapultado pelo massacre do Carandiru, que deu subsídio ao
fortalecimento da entidade. Sem me alongar no tema, que envolve erros do
governo ditatorial, intelectuais presos nos anos de chumbo e pífias políticas
de segurança pública, deve-se entender que, o que acontece em uma prisão
reflete automaticamente nas ruas. Assim, uma prisão violenta gera mais
violência.
J.U:
Afinal de quem é a culpa?
R.C.J: Não podemos apontar um culpado somente, a culpa deve ser
pulverizada,. Todos são culpados. A população que incentiva essas ações
violentas; O judiciário que condena sem o contraditório e ampla defesa; Os
governantes que se omitem, que não apresentam projetos, que não utilizam de
maneira correta as verbas recebidas, que preferem não destinar toda a verba do
fundo penitenciário almejando um superávit em sua balança, que em nome de votos
acaba por preterir melhores políticas públicas penitenciárias; o MP que se
omite; a OAB; Os advogados; O legislativo que infla a legislação penal, sem
ouvir os especialistas, sem analisar as consequências e visando apenas o voto.
Enfim, todos nós somos cumplices nas decapitações ocorridas em pedrinhas ou em
qualquer prisão no Brasil.
arte: LATUFF |
Entrevista exibida em fevereiro de 2014 em jornal impresso. Para ver a reportagem original clique AQUI