AVALIAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA NA ÍNTEGRA
ENTREVISTA JORNAL DE UBERABA SEM CORTES
1. O Brasil é o país da impunidade?
Primeiramente
devemos pensar em impunidade de quem? Pois os presídios estão abarrotados de
uma determinada parte da população. Pessoas muitas vezes presas por crimes sem
violência, sem potencial lesivo, enquanto outras desviam milhões, se corrompem,
sonegam impostos e nunca são incomodados pelo poder coercitivo. Portanto
devemos pensar mais na seletividade do controle penal que atinge apenas uma
parcela da população do que necessariamente em impunidade. Todos nós cometemos crimes
em nossa vida, da mera compra de um cd pirata a crimes de trânsito, no entanto estamos
soltos. Será mesmo que o Direito Penal funciona de maneira geral e democrática?
Ou determinada parcela da população nunca será atingida pelo Direito Penal?
2. A maioria da população brasileira condena a
segurança pública, Dr. como o Sr. avalia a segurança pública? Quais são os
problemas mais graves?
Hoje
nós vivenciamos uma crise sim na segurança pública, pois temos uma corrupção
generalizada em todos os níveis da administração pública, o que prejudica
pensarmos em qualquer política pública de segurança.
Caso
o Brasil queira investir em segurança, deve acompanhar o fracasso e sucesso dos
programas de outros países e assim criar medidas que sejam eficazes e interessantes.
Pelo mundo tivemos exemplos que optaram pela prisionização máxima como o
“tolerância zero” em Nova York (que aliás, em nada mudou o cenário de
impunidade de classes abastadas). Temos também nos Estados Unidos o “Broken
Windows” (ou teoria das janelas quebradas) que tratou de uma mudança estrutural
na cidade, que ia além do policiamento coercitivo, mas abarcava iluminação de ruas
e praças, higienização das vias públicas, policiamento comunitário. Em Bogotá
tivemos uma política radical de corte no efetivo policial, assim como uma
reestruturação social. No Brasil temos propostas interessantes também, como o “Fica
Vivo” em Minas Gerais com policiamento comunitário, criação de oficinas e
reinserção de egressos na comunidade por meio do CEAPA.
O
problema mais grave é adequar todas essas idéias às peculiaridades de cada
região, o que serve no Jequitinhonha não necessariamente servirá para Uberaba.
Devido
a isso que confio particularmente em saídas que vivenciam o problema local como
em Uberaba acredito muito no Conselho de Segurança da Comunidade, acredito que
tal conselho deve ter papel mais atuante e que o poder público escute mais tais
pessoas. Assim como o centro de prevenção da criminalidade, e a atuação do Fica
Vivo em nosso município. CEAPA, mediação de conflitos e outros.
3. A impressão que dá é estamos em grande desvantagem.
Porque o crime está fora de controle? Porque não conseguimos vencê-lo?
Hoje
vivenciamos uma crise não só na segurança pública, mas em toda nossa sociedade.
Temos uma corrupção congênita em todos os níveis sociais.
O
crime está fora de controle? Concordo!
Mas
quais crimes estão fora de controle? Será que não fazemos parte disso? Falar apenas
da corrupção de nossos políticos é esquecer que praticamente todos nós
praticamos atos atentatórios ao Direito. Vivemos em uma sociedade do
“jeitinho”, do “levar vantagem em tudo”, do “com nota ou sem nota”, do “rouba
mais faz”, de colas em provas, estacionar em local proibido, estacionar em
rampas de acesso, dirigir embriagado, dirigir além do limite de velocidade,
sonegação de impostos, evasão de divisas, compra de CDs piratas, musicas e
vídeos na internet, de compra de produtos falsificados (relógios, óculos), de
emissão de cheques sem provisão de fundos, pequenas corrupções de agentes
públicos, pequenos estelionatos, de empregos e cargos públicos conquistados
pela amizade e favores, etc. Em uma sociedade como essa eu também devo
concordar que não estamos vencendo.
Não
conseguimos vencer por causa justamente disso, pois somos exatamente parte do
problema. Criticamos os políticos, mas votamos recorrentemente naqueles de
maior poder aquisitivo e com mais processos de improbidade. Para mudarmos o
panorama da criminalidade temos de mudar nossa cultura também, nosso próprio
jeito, e parar de achar que o “inferno são sempre os outros”.
4. Os fatores: pobreza, má distribuição de renda,
injustiça social, é um peso importante na gênese do fenômeno-crime?
Sim.
Tais fatores são de crucial importância ao tratarmos de uma sociedade violenta.
Em uma sociedade desigual é mais fácil vislumbramos a criminalidade violenta. O
direito penal, focado em determinada e excluída parcela da sociedade contribui
para a verticalização social e a perpetuação das diferenças sociais. O direito penal
é seletivo e segregador e em nosso país podemos vislumbrar isso claramente,
vendo a cada dia pessoas que detém o poder econômico passarem ao largo da
justiça e serem beneficiados a todo o momento. A própria sociedade se mostra
muito benevolente com criminosos de alto poder aquisitivo. Em contrapartida os
criminosos pobres são execrados por todos.
Lembro que os fatores apontados nessa pergunta não são os únicos para se
diagnosticar a violência e o comportamento criminoso. Dentro da criminologia tratamos
o crime como um fenômeno multifatorial, e não podemos reduzir apenas às
questões sociais. Ressalto que temos várias teorias para se explicar a
criminalidade e o tema não pode se esgotar nessa resposta. Lembro que a
psicanálise, por exemplo, desconstrói o fenômeno crime, sem, no entanto, desresponsabilizar
o criminoso. Já a criminologia crítica nem chega a tratar do fenômeno crime,
mas sim questiona as instituições de controle social. Enfim o que quero dizer é
que temos muitos estudos sobre o fenômeno crime e não podemos nunca reduzi-lo a
um ou outro fator.
5. Há uma ideia generalizada de que as leis penais são
benevolentes e frouxas. Trata-se de uma meia verdade?
Não
é uma meia verdade, é uma mentira inteira! Falar em leis benevolentes é uma das
maiores inverdades que vemos ser disseminadas, temos um sistema de leis que
penaliza mais de 4 mil condutas ao todo!!! Em um sistema carcerário precário e
falido. Devemos pensar que temos um sistema penal onde empregar irregularmente
verbas públicas tem pena de 3 meses (art. 315 do CP) e o furto (subtração sem
violência, art. 155 do CP) tem pena de 4 anos. As leis são benevolentes e
frouxas para quem?
6. É incapacidade ou falta de vontade de criar os
instrumentos para executar penas mais severas?
Não
podemos falar em falta de vontade, pois o que mais temos são projetos de lei
para aumentar pena, diminuir idade penal, criminalizar condutas e instituir
pena de morte. O que falta são projetos de lei que tornem a sociedade mais
igualitária e justa. Temos quase 600 mil presos, o que penas mais severas nos trariam?
Apenas determinada parte da população vai presa, seria leviandade falar que
leis mais severas beneficiariam nossa sociedade. Leis mais severas para quem?
Pelas experiências pelo mundo, vemos que aumentar as penas (ou mesmo instituir
a pena de morte), nunca trouxe a melhora na violência ou a melhora na sensação
de segurança do cidadão. O direito penal atinge um homem pardo, com menos de 30
anos, solteiro e pobre. Penas mais severas só atingiriam essa classe. Muitos
falam sobre os vários recursos que temos para a progressão penal e para que as
penas sejam diminuídas. Mas o que não é noticiado é que parte da população
carcerária ainda não foi julgada, outra parte já cumpriu a pena e continua
presa e outros tantos devem aguardar mutirões da justiça para terem seus
processos movimentados.
7. Aumentar o policiamento nas ruas, combater o
tráfico de drogas, aumentar as penas pelos crimes cometidos, ampliar as
políticas de combate à pobreza, seriam elementos para reduzir a violência
criminal?
Não.
Talvez seja totalmente o contrário. Aumentar policiamento não reduz a
violência, mas inserir o policial na comunidade, dar condições dignas de
trabalho, pagar bem para que não se sujeitem a corrupção, isso sim pode ajudar.
Na Colômbia, por exemplo, tivemos uma desaceleração dos números dos crimes
violentos a partir da década de 90 e uma das medidas para se diminuir tal
violência foi cortar parte do efetivo policial, se investindo em qualidade dos
serviços. Sobre as drogas lembro que é uma questão que deve ser tratada em
outra esfera, é um problema de saúde pública. Devemos descriminalizar de uma
maneira clara o uso de drogas e inserir esse usuário em nossa teia de
serviços sociais. Ele não pode mais ficar excluído e a margem de nossos
serviços. Este usuário deve ser abarcado com políticas de reinserção social e
não com medidas coercitivas e violentas como estamos vendo. Afinal de contas
duas das drogas mais nocivas são liberadas ao consumo (álcool e cigarro). A
questão precisa ser repensada de maneira responsável e sem estereótipos ou
estigmatizações. O combate a pobreza é um elemento que pode nos ajudar a
caminhar para uma sociedade mais justa, mas todas as políticas contra a fome
devem ser acompanhadas de outras políticas que dêem ao cidadão a chance de
caminhar com suas próprias pernas. É importante e vital tirar as pessoas da
miséria, mas não podemos nos contentar apenas com isso, temos que dar a estas
pessoas as condições de buscarem sua vivência digna e autônoma, com educação e
outros serviços básicos.
8. A busca e o resgate à cidadania da maior parcela da
sociedade, através do respeito à dignidade da pessoa humana pode influenciar
positivamente na segurança pública?
A
dignidade humana, assim como os direitos e garantias fundamentais do cidadão
são, definitivamente, o único caminho que temos para uma sociedade mais
igualitária e menos violenta. Temos hoje 20 milhões de pessoas na miséria no
Brasil, quando eu atuava no interior da Bahia, eu pude acompanhar uma realidade
que nossa região nunca vivenciou tão claramente: a pobreza extrema, a fome, a
seca e o total desamparo das autoridades. É muito fácil para nós falarmos em
dignidade sem vivenciarmos estes problemas de perto. Em Uberaba, mesmo de uma
forma menos intensa, temos várias pessoas em situações degradantes e nada fazemos.
São pessoas invisíveis que encontramos nas calçadas, nos sinaleiros e acabamos
por não enxergá-los. Os direitos da personalidade estão sendo usurpados, a todo
o momento, de grande parte de nossa população. Na engrenagem capitalista que
vivemos o individualismo sempre prevalece e só começamos a olhar o outro quando
ele comete um ato violento ou quando ele invade meu espaço. É fácil criticarmos
do sofá de casa, condenarmos pelo controle remoto e crucificarmos outras
pessoas no ar condicionado de nossas salas e escritórios. Ações reais e
afirmativas são poucas em uma sociedade que vive na ideologia do “vou fazer a
minha parte e basta”. Não basta apenas fazer minha parte, tenho que mudar a
realidade a minha volta, tenho que me politizar, tenho que polemizar, discutir,
não aceitar essa realidade como ela é. Sair da omissão e assumir um papel de
protagonismo social. Enquanto olharmos com passividade e aceitação pessoas em
circunstância de miséria, pessoas nas ruas ou crianças nos sinaleiros nós
seremos sempre cúmplices dessa situação. Por vezes é mais fácil dar moedas do
que empregar, do que conversar, dar voz ao outro.
9. O sistema prisional oferece
estrutura para os apenados e capacitação para os agentes de segurança? O
que pode ser feito?
Não existem as mínimas condições para uma reinserção de presos no
Brasil. A ressocialização de presos é uma falácia e dentro da criminologia ela
é criticada em sua ideologia. Os servidores também não podem ser exigidos, pois
não têm condições ou salários ideais. Independente das concepções críticas,
podemos afirmar que existem soluções que vão desde uma sociedade sem
desequilíbrio econômico, sem miséria e pobreza ou uma maior eficácia social em
nossa comunidade, até soluções mais práticas como o CEAPA em Minas Gerais, estimular
as penas alternativas, diminuir penas no código penal, descriminalizar algumas
condutas, rever a questão das drogas e aplicar o direito penal de maneira igual
para todos na sociedade.
10. A
superlotação ainda é um problema registrado dentro dos presídios?
Hoje estamos perto de 600 mil presos. Sendo que praticamente um terço
deles ainda não foi devidamente julgado e condenado. As vagas são insuficientes
para abarcar 2/3 destes presos. Ainda temos milhares de mandados de prisão em
aberto, ou seja, se todos forem cumpridos a situação que já é caótica ficaria
incontrolável. Somos o quarto país em número de presos no mundo. Nos últimos
anos nossa comunidade carcerária simplesmente dobrou. Poderia dizer que vamos
chegar a um colapso, mas acredito que o colapso já aconteceu há mais de uma
década.
11. O Sr acha
que o Funk desmoraliza as mulheres e estimula a criminalidade?
Será que também não desmoraliza os homens? Afinal vivemos em uma
sociedade machista e toda conduta feminina é censurada. Será que o funk na
verdade acaba por traduzir exatamente a visão machista de se ver a mulher? Não
acredito que o funk como música desmoralize apenas mulheres, lembro que o
escritor Frei Beto já afirmava, há dez anos, que estamos sofrendo um processo
de erotização de nossas crianças pela mídia. Estamos hoje colhendo os frutos
dessa erotização precoce, em uma sexualidade destituída de afeto e de carinho.
Sobre a criminalidade, o funk apenas externa o cenário que está a sua
volta, de comunidades violentas, de omissão do Estado e formação de
subculturas. Chegamos a uma premissa impossível: o funk estimula a
criminalidade, ou a sociedade violenta estimula as letras do funk?
12. O Sr
acredita que seria melhor e mais seguro cuidar da educação da criança para não
ter que puni-los quando adultos?
A educação é a saída não apenas para a segurança, mas para a saúde, a
economia, e principalmente para a nossa crise ético-política. Mas pergunto se é
interessante trabalhar e investir em educação em nosso país. No Brasil hoje
vivemos um situação no mínimo contraditória, onde uma criança no ensino
fundamental custa em média aos cofres públicos de R$ 600,00 a 900,00 Reais, e
um cidadão com restrição de liberdade chega a custar R$ 2.000,00 Reais. Temos
dois problemas nestes dados que ora apresento: primeiramente existe uma clara inversão
de ordem no direcionamento das verbas públicas, pois se investíssemos o dobro
em educação fatalmente nossos custos cairiam no tocante a prisionização, em
segundo lugar não podemos deixar de lembrar que apesar de termos pesquisas e
estudos que comprovam estes valores, ao adentrar um presídio não conseguimos
vislumbrar onde estão aplicados estes dois mil reais, tampouco em uma escola
pública vemos estes novecentos reais. Algo definitivamente não bate em relação
ao custo e o benefício destes valores declarados.
Agradecimentos: Sandro Neves.
Veja a entrevista original aqui: http://www.jornaldeuberaba.com.br/cadernos/cidade/1466/criminologo-avalia-seguranca-publica