PODER, BODE EXPIATÓRIO E GUERRA ÀS DROGAS
Inicialmente vale lembrar que o controle social
está diretamente atrelado aos objetivos da sociedade atual de conter-se e de
vigiar-se. Todo ato que visa controlar a sociedade é um ato que deve
expandir-se, deve comunicar-se para atingir seu êxito, pois é através da
comunicação que se consolida na sociedade. Desta forma, mais importante que o
próprio controle é fazer com que a população creia que necessita de tais
controles. Insere-se neste ponto a ideia de que é necessário que a população
crie bodes expiatórios (HAMMERSCHMIDT; GIACOIA, 2009).
No entanto, o fenômeno de construção de bodes
expiatórios não é recente. A história da humanidade é permeada de uma série de
personagens que assumem o papel de antagonistas dentro da cena social. Os
usuários de drogas são apenas uma das releituras dos hereges do século XV, dos
índios, negros, imigrantes, e até os nordestinos do século XX. A história,
portanto, se repete na criação de um inimigo a ser combatido, um ser a se
considerar fraco e frágil frente aos verdadeiros valores sociais de cada época
(CHRISTIE, 1993).
Desta maneira, os castigos e punições a
determinados sujeitos consolidam a ideia de sacrifício, que deve ser
considerado aqui como a transferência a uma vítima selecionada de todo o ódio e
tensão que geram mal-estar na sociedade. Neste sentido, o papel deste objeto
vitimário deve ser de figuração na sociedade, ou seja, deve estar inserido no
seio social, pois é essencial que haja a identificação dos cidadãos para com
ele, mas não pode compor parte fundamental da coletividade (MARUJE, 2013).
A partir da ideia de bode expiatório deve se
ressaltar que as drogas ou substâncias psicoativas sempre existiram em todas as
culturas e estão presentes em passagens simbólicas importantes da sociedade
moderna ocidental como a água transformada em vinho em um importante momento
bíblico. No entanto, essa perenidade histórica das substâncias entorpecentes
não caminha lado a lado com a proibição que é fenômeno, particularmente,
recente e potencializado nas últimas décadas do século XX (KARAM, 2011).
Assim, o estreitamento da relação entre o uso de
drogas, sua proibição e a formação de uma imagem estigmatizante do sujeito
entregue à dependência (bode expiatório) não pode ser considerado um valor
ontológico pertencente às sociedades. Foi uma construção histórica peculiar e
lenta, mas não aleatória (ou acidental) e sim um projeto de consolidação que se
iniciou (ou potencializou) em uma guerra.
Tal projeto de consolidação visou a materialização
de uma política bélica contra determinadas substâncias e que acabaria por
lançar um estigma aos usuários (em especial dependentes) de drogas. A proibição
é uma construção social multifatorial recente e o estigma e a rotulação ligados
ao uso de drogas são ainda mais contemporâneos. De início, a proibição visou,
em seu discurso oficial, a abstinência geral de toda a população frente à
determinadas substâncias. No entanto, a ideia de abstinência como solução para
as drogas se comprovou ao longo dos anos inútil frente à cultura e necessidade
dos sujeitos e pelo princípio do livre arbítrio e da busca íntima e individual
do prazer (KARAM, 2011).
A necessidade humana de fugir do deserto do real,
em buscar a efemeridade de momentos ultrapassa a disciplina de se manter sóbrio
durante toda uma vida, por mera construção legal (ZIZEK, 2006). Além de vazia e
utópica, a política de abstinência foi atingindo o status de perigosa e
totalitária à medida que a partir da década de 1960 começou-se a pensar em uma
política pública mundial de profilaxia relacionada a determinadas substâncias
eleitas de maneiras incoerentes e arbitrárias.
Tal política foi nomeada por “guerra às drogas”[1],
nome que representa o belicismo estatal e social que seria construído ao longo
dos anos frente aos usuários (KARAM, 2011).
Neste contexto, a pregação de cunho moral[2]
alcançou, portanto, o status de política global que culminou com o alastramento
de políticas estatais de patrocínio à intromissão do Estado na esfera privada.
Tal intromissão se resguardou em uma série de leis e normas internacionais e
que foram integradas aos ordenamentos jurídicos nacionais e resultaram em uma
teia normativa segregacionista e excludente.
Esta guerra auxiliou na consolidação do modelo de
estrutura de controle social apresentado neste trabalho, pois com a ideologia
bélica frente a usuários de substâncias ilegais se alastravam também as
possibilidades de controle do Estado, sob os auspícios do bem comum e também da
saúde individual. Embora fosse arbitrária a eleição das substâncias a serem ou
não demonizadas, o rótulo de desviantes se consolidou.
Ainda, além de fortalecer as estruturas de
controle, a guerra potencializou o caráter bélico na atuação do poder punitivo.
Assim, após a proliferação da ideologia beligerante frente às drogas, se
observou a expansão do Direito Penal atrelado a um processo de rotulação e
estigmatização em proporções industriais no seio social e a consolidação da
exclusão pela sociedade.
A postura beligerante, além de influenciar a
dominação e controle social, ainda repercutiu de maneira direta no seio social,
principalmente no que diz respeito à população periférica. Esta repercussão é
enfatizada por Karam (2011, p. 2), quando aborda os efeitos da guerra às
drogas:
Espalhando
violência, mortes, prisões, estigmas, doenças, sem sequer obter qualquer
resultado significativo, nem se diga na irracional pretensão de acabar com o
consumo das selecionadas drogas tornadas ilícitas, mas nem mesmo na redução da
circulação das substâncias proibidas.
Vale acrescentar que embora drogas legais não
compartilhassem o mesmo peso simbólico das substâncias ilícitas, os usuários
delas dependentes tiveram também o peso da segregação. O abuso destas
substâncias começou também a ser demonizado como a representação de uma
fraqueza ou de uma ruína frente a sociabilidade.
Tal realidade persiste até hoje e o uso socialmente
aceito se consolidou como um padrão a ser referendado pelos sujeitos. Nesta
perspectiva, qualquer desvio neste modelo fragiliza o sujeito e o deixa
vulnerável à exclusão e posteriormente apto a alimentar as engrenagens de
controle.
Por conseguinte, o rótulo se consolidou abrindo a
enorme possibilidade ao arbítrio nas decisões, assim como ao Estado a
possibilidade de vincular a proibição a alguns grupos específicos. Este alastramento do alcance dos grupos a
serem vulnerabilizados não foi exclusividade da Guerra às Drogas, mas
inegavelmente foi potencializado em razão de sua existência.
No Brasil, bem antes da guerra às drogas, já
tínhamos exemplos do uso da criminalização de substâncias direcionadas a certos
grupos como, por exemplo, a proibição do cânhamo[3].
Já nos Estados Unidos, mesmo antes da política proibicionista, já se
vislumbrava um cenário em que a canabis se associava fortemente aos imigrantes
mexicanos[4].
Chega-se ao irrefragável fato que o proibicionismo
fracassou em seu principal objetivo oficial, qual seja: a abstinência do sujeito
e a derrocada da oferta em todo mundo[5].
No entanto, seus efeitos ideológicos estão potencialmente alastrados.
O aparelhamento do Estado policial tem no combate
ao tráfico de drogas seu principal objetivo e alicerce. Entretanto, a despeito
de todo o esforço despendido, a venda de substância lícitas e ilícitas que
alteram o comportamento cresce vertiginosamente (KARAM, 2011).
Embora a economia e cultura comprovem o fracasso de
tais políticas, estas ainda se perpetuam e se avolumam por todo o mundo. Continuam,
também, patrocinando uma estrutura de exclusão representada pelas engrenagens
de controle oficial, como prisões e clínicas terapêuticas, dentre outros
espaços de exclusão que são alimentados hodiernamente por usuários de drogas
ilícitas e lícitas.
De acordo com Karam (2011, p. 3):
A
proibição às selecionadas drogas tornadas ilícitas forneceu e fornece o impulso
requerido pela consolidação de uma globalmente uniforme tendência punitiva e
uma expansão do poder punitivo sem paralelos.
A expansão do poder punitivo de maneira ilimitada
se encontra localizada em instrumentos de cerceamento de liberdade diversos do
poder penal, do cárcere ou manicômios judiciais, que contribuem para a
consolidação e expansão do ideário de exclusão.
Neste aspecto, é vital salientar o papel dos
saberes médicos e hospitalares na consolidação do controle, na expansão do
poder punitivo e concretização do domínio, apoderando-se do conceito de guerra
para atingir determinados grupos sociais.
Neste sentido, ao analisar o acolhimento forçado no
Rio, Karam (2011, p. 11) afirma:
O
manifestamente ilegítimo “recolhimento” e internação forçada de crianças e
adolescentes em situação de rua no Rio de Janeiro, sob o pretexto de
supostamente “livrá-las” do crack, é mais uma expressiva demonstração de quem
são os “inimigos” na versão brasileira da “guerra às drogas”.
Assim, podemos aferir que a guerra às drogas
culmina com uma política bem mais abrangente e ilimitada voltada ao cerceamento
da liberdade, a profilaxia e higienização de determinados indivíduos. O
controle, portanto, se fragmentou em uma série de simbologias e ferramentas,
ora evidentes, ora subliminares, visando à docilização de determinado nicho
social. A exclusão, a violência, a criação de bodes expiatórios, a
vulnerabilização de sujeitos e perpetuação da estratificação social foram
ingredientes que consolidaram os usuários de drogas como vítimas expiatórias,
ora pela proibição da substância, ora pelo excesso em seu gozo e desejo.
Referencias
CARLINI,
E. A. A história da maconha no Brasil.
J. bras. psiquiatr., Rio de Janeiro
, v. 55, n. 4, p. 314-317, 2006 .
Disponível em:
.
Acesso em: 11 Jul. 2016.
CHRISTIE,
N. El control de las drogas como um avance hacia condiciones totalitárias. In: Criminología Crítica y Control Social.
Rosario: Editorial Juris, 1993.
HAMMERSCHMIDT,
D; GIACOIA, G. Crise Atual do Sistema
Penal de Controle Social. 2009 Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e32c51ad39723ee9. Acesso em: 31
mar. 2016.
KARAM, M.
L. Direitos Humanos, laço social e
drogas: por uma política solidária com o
sofrimento humano. Conferência de abertura do VII Seminário Nacional
Psicologia e Direitos Humanos. Brasília,
DF, Nov. 2011. Promovido pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de
Psicologia (CFP) – Brasília-DF – novembro
2011.
MERUJE,
M. ROSA, J. M. S. Sacrifício, Rivalidade Mimética e “Bode Expiatório” em R.
Girard. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.8, n.2. p. 157.
Disponível em:
http://www.ufrb.edu.br/griot/images/vol8-n2/13.pdf. Acesso em: 27 Mar. 2014.
ŽIŽEK, S. Bem
vindo ao deserto do Real!. Boitempo Editorial, 2006.
[1]
A “guerra às drogas” foi
declarada, mais precisamente, em 1971 pelo Presidente americano Richard Nixon e
acabou por inserir ou reinserir de uma maneira atualizada a velha ideologia
pautada em uma guerra como modelo justificador para a atuação do sistema penal.
[2]
Karam (2011, p. 4) define e
resume o vínculo entre guerras às drogas e moral da seguinte maneira: “Drogas
estão associadas ao prazer, elemento que propicia o lançamento de cruzadas
moralizantes”.
[3]
A palavra maconha é um anagrama
de cânhamo. O cânhamo foi introduzido no Brasil em 1549 e sua história se
confunde com a história da Colônia. No século XVIII, havia incentivo da coroa
portuguesa para o cultivo desta planta. A droga foi difundida entre os escravos
e no século XIX a postura da coroa começa a mudar no sentido da limitação e
proibição, o que culminou no século XX com a proibição da maconha na
conferência internacional do ópio em 1924, com grande protagonismo do Brasil
(CARLINI, 2006).
[4]
Sobre este tema e estes dados,
ver a pesquisa The racial history of U.S.
drug prohibition”, da Drug Policy Alliance. Disponível em http://www.drugpolicy.org/about/position/race_paper_
history.cfm
[5]
Com efeito, após cem anos da
globalizada proibição com seus quarenta anos da nociva, “insana e sanguinária
guerra às drogas”, o resultado visível é que as substâncias proibidas foram se
tornando mais baratas, mais potentes, mais facilmente acessíveis e mais
diversificadas (KARAM, p. 2, 2011).